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07 dezembro 2015

A MISERICÓRDIA COMO CAMINHO, Tolentino Mendonça


A caridade não é uma vaga e eventual manifestação de piedade, mas um radical e preciso sentido do outro
 
A eclesiosfera católica começa o Ano Santo da Misericórdia e com um voto expresso do Papa Francisco que não será propriamente fácil de realizar: “Que a chamada para experimentar a misericórdia não deixe ninguém indiferente.” Francisco procura mobilizar antes de tudo a própria Igreja, desafiando-a a regressar ao essencial do espírito evangélico, pois, como também escreve, “talvez, por demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia”. E, para que não restem dúvidas, deixa claro o seguinte: “A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo.” Como vai ser gerido este apelo e que ondas gerará ainda é naturalmente uma incógnita. Em Roma espera-se um milhão de peregrinos por mês ao longo deste ano, mas a verdadeira questão não é essa, mas sim como se irá mover, espiritual e existencialmente, o bilião de católicos que representa 18% da população mundial. O Papa não esconde que o Ano Santo é uma etapa de conversão interior, um tempo para a revisão de modelos operativos e aquisição de um novo estilo: “O tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral renovada... Quanto desejo que os anos futuros sejam permeados de misericórdia.” Há uma gramática dos gestos, em Francisco, que corporiza e não raro (e não sem surpresa) alarga o âmbito das próprias palavras. E tudo nele mobiliza os crentes para que cada um, à sua maneira, se torne a “porta santa” capaz de encarnar o rosto da misericórdia. Sem deixar de recordar que a misericórdia ultrapassa as fronteiras da Igreja e deverá ser redescoberta como uma ponte para o diálogo inter-religioso e transcivilizacional, contribuindo para melhor nos conhecermos e compreendermos uns aos outros.
A misericórdia poderá ser, contudo, uma categoria a precisar de retradução cultural, como se passou com o termo “caridade”, que ainda hoje muitos não conseguem engolir, tal o desvio e o peso caricatural que a expressão sofreu no tempo. Há teólogos que preferem, por exemplo, falar de uma “caridade da razão” ou de uma “caridade política”, pois ela, de facto, não existe desligada do âmbito da justiça e dos direitos fundamentais que assistem a pessoa humana. A caridade não é uma vaga e eventual manifestação de piedade, mas um radical e preciso sentido do outro. Semelhante recontextualização hermenêutica deve merecer a misericórdia. Tanto na Bíblia hebraica como na cristã, a misericórdia não é apenas uma emoção diante do sofrimento alheio. É verdade que ela emerge do impacto irrecusável da dor do outro em nós, mas depressa se transforma em práxis e em ética. A misericórdia deve ser feita. Contando a um doutor da Lei a mais importante parábola da misericórdia, a do bom samaritano, Jesus diz: “Vai e faz tu também o mesmo” (Lucas 10:37). Isto é: faz segundo a necessidade concreta do outro. Ouve o seu grito: tenho fome, tenho sede, tenho frio, estou só, sou estrangeiro, estou doente, estou na prisão... A prática da misericórdia fala assim da materialidade da vida em detalhe: do comer e do vestir, da habitação e do acesso aos cuidados de saúde, da qualificação afetiva do que vivemos através do esquecido exercício da consolação, da hospitalidade e do calor do acolhimento, da reconstrução da dignidade nas vidas negadas. A misericórdia refaz a qualidade da vida como imperativo. “Como Eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (João 13:34) — é o mandamento deixado por Jesus. É uma ordem, mas também a revelação de uma possibilidade: a de podermos participar da misericórdia de Deus.
 
[A Revista Expresso | Edição 2249 | 05/12/15]