Sonata de Outono
E o outono vai-se instalando. A princípio nem parece uma estação. É
quase um estado de alma, este tempo assim um pouco vago, em declive delicado,
com a chuva ainda rala (mesmo se em alguns dias chega por aí aos tropeções) e o
vento que parece um miúdo a aprender a assobiar. Olhamos com íntima estranheza
para a brevidade destes primeiros dias, dos quais já não nos lembrávamos. Nas
árvores, as folhas tremeluzem, indecisas e iluminadas, transmutadas em
incríveis tonalidades. Os frutos têm perfume e sabores densos, tão diferentes
daqueles que se saboreiam no verão.
Lembro-me de um poema de Miguel Torga, que gosto de pôr a tocar como
uma pequena sonata de outono:
O que é bonito neste mundo e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova
Neste arranque de outono, deixo-me demorar nas palavras: "a
doçura que se não prova". Tendo o privilégio de acompanhar a vida de
muitas pessoas, sei que esta não é uma questão que se possa iludir. Há um
momento na nossa vida, ou há momentos nela, em que fazendo um balanço, sentimos
que ficámos aquém dos nossos próprios sonhos. Há dias e estações da nossa vida
em que nos sentimos mendigos de nós mesmos. Esperávamos isto e aquilo que não
aconteceu.
Desejávamos uma plenitude, uma fulgurância, um clarão e o que temos é
uma estreita e baça normalidade. Sentimo-nos, sem saber bem como, a viver sob
tetos baixos. Há uma espécie de doçura prometida que nos escapa, que fica
adiada, que começamos talvez a julgar que já não será para nós, tão inacessível
nos assoma. Por vezes, este sentimento vem aos 70 ou aos 40 anos. Mas também
surge aos 20 ou aos 30. Recordo aquela frase terrivelmente verdadeira de um
romance autobiográfico de Marguerite Duras: «Muito cedo na minha vida foi tarde
de mais». Esta difusa melancolia, este sentir que a luz que interiormente nos
alumia se tornou fosca e sem alcance são experiências muito alargadas. Por isso
se diz que não dependem propriamente da idade os outonos interiores que
atravessamos.
Existem é modos diferentes de encarar essa experiência, que, no fundo,
nos é tão intrínseca e comum. Podemos desistir simplesmente de esperar, e
largamos a vida no parque de estacionamento do pragmatismo mais raso. Podemos
trocar a doçura que não conseguimos, por um tipo de acidez quotidiana, uma
desconfiança sistemática a que nada nem ninguém escapam, e que se vai
espalhando, entre a ironia e o desalento, contaminando tudo. Ou podemos, e esse
é o olhar mais necessário, perceber que «a doçura que se não prova/se
transfigura numa doçura/muito mais pura/e muito mais nova».
O outono não é, portanto, o fim da história. Se o soubermos agarrar, é
sim um ponto de partida avançado, que nos permite essa coisa urgente que é a
"transfiguração" da vida, através de um paciente e esperançoso
trabalho interior.
José Tolentino Mendonça
Foto: Serra da Estrela