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21 setembro 2018

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Carlos nogueira

JUNTO AO CHÃO I CAPELA DO RATO
Lisboa 26 julho / 09 setembro


capela
escória de ferro, ferro, sal, luz,
o som do vento e da água que corre,
bonança


Quero partilhar convosco aquilo que me foi dado viver aquando da visita a esta exposição – JUNTO AO CHÃO na Capela do Rato. Fi-lo acompanhada pela minha filha Clara e por uma amiga, Sílvia. Mas, aquilo que aqui escrevo prende-se com a minha experiência individual, única e de uma interioridade quase escancarada.

Ao entrar na Capela senti um misto de sensações, passámos da luz para a sombra (tudo estava escuro, chão e capela) mas, algures na Capela uma “tábua rasa” vazia mas de Luz. O vazio não mergulhou em mim, mas a Luz levou-me longe e para o mais profundo das vestes da Transfiguração. A Luz plena, inteira e serena no meio físico do escuro e do chão forrado a escória de ferro. 


A caminhada que iniciei foi no total conforto do meu calçado, sentindo a irregularidade dos meus passos e ouvindo os mesmos – passos que se misturavam de forma sonora na escória de ferro. Nas paragens que fiz ao longo do percurso físico da sombra e Luz fui ouvindo o som da água e do vento… envolvem-nos e convidam-nos a outros lugares, cá dentro… mais fundo… às memórias e ao meu património humano… senti que volvi ao útero de minha mãe, a Água Viva e aos batimentos cardíacos, o vento do Sopro da Vida. Regressei à maternidade gerada não criada de Deus Pai que nos desenha no seu coração e nos conhece no mais íntimo do mais íntimo. Avançava e chegada à “tábua rasa”, à Luz… eis o Sal, aquele que dá sabor à Vida. Toquei-lhe, deslizei as minhas mãos por ele e permiti deixar-me salgar pela Luz de Sal que o artista pensou e nos ofereceu como um chegar e um devolver ao quotidiano.

Depois, troquei uma palavras com a Sílvia e resolvi despir-me do conforto do calçado e caminhar… a escória é dura, ríspida, desconfortável… e tanto e tudo tão difícil ou que me leva a tomar consciência das minhas fragilidades… aqui, depois de uns passos… tive a sensação das dores de parto. Nasce para a Vida, nasce para a Luz e voltei ao Sal. Contemplei o seu mistério, tentei perceber que eco criava em mim… o simples, o humilde e o contínuo convite ao Ser.

é preciso ir das coisas que se veêm e não existem
às coisas que existem e não se veêm

SÃO JOÃO DA CRUZ

Sofia Preto
CVX-BI




Há convites que me chegam e não hesito um segundo em aceitar. Assim foi com este convite feito pela Sofia Preto para ir espreitar a instalação "Junto ao Chão", do Carlos Nogueira, que esteve na Capela do Rato de 26 de Julho a 9 de Setembro. "Escutar os próprios passos." Entrar numa capela e escutar os meus passos, pareceu-me logo uma provocação ao espírito e aos sentidos.

Quando chegámos à entrada da capela não sabia quem de nós estava mais curiosa. Duas cortinas cinzentas abriram a porta dos sentidos, como se estivesse a entrar dentro de um espaço que me é familiar e que se tinha transformado num não lugar. Já não era só uma capela, era um espaço de sentir, de curiosidade, de mistério. Numa espécie de antecâmara fui imediatamente impelida a escutar. O som da água ecoava como convite a lembrar-me da minha sede. Essa sede de caminho, de perguntas, de desconhecido, essa sede que me faz ter vontade de encontrar-me com a fonte, uma sede que me chama a percorrer o caminho.

Decidi despojar-me o mais possível deixando a mala e os chinelos à entrada. Queria caminhar leve, descalça, sentir o caminho com toda a sua dimensão. 


O primeiro impacto com as pedras feitas de escória de ferro escuras, frias, angulares, ruidosas, fizeram-me parar, logo ali, no princípio, para me colocar num posição de humildade e aceitação, em que o questionamento foi inevitável. "- Onde estou? Quem sou eu aqui e agora? Para onde quero ir? O que procuro?" 

A luz ténue e sombria adivinhava subtilmente o espaço, o som da água e do vento retinham a minha atenção no que estava fora de mim. Ergui a cabeça e contemplei o que estava por vir. Ao centro encontrava-se um objecto rectangular, desenhado de uma brancura que se destacava pela iluminação precisa. Não conseguia perceber o que era mas estava ali, a convidar-me, a atrair-me a si, a pedir-me para fazer o caminho até ele. Lembrou-me, pela forma que tinha, o sepulcro vazio de Jesus, o que me colocou no papel das mulheres que chegaram à gruta e se depararam com a ausência.

Como metáfora da vida, a cada passo, uma escolha, a cada escolha, uma sensação, a cada sensação um significado. Nenhum passo foi ausente de dor, às vezes colocava os pés em zonas mais difíceis, com pedras maiores e instáveis, obrigando-me a demorar, a encontrar o equilíbrio, a sentir na lentidão a dor a chegar e os impulsos que isso provocava em mim.

Fui ouvindo também os passos dos que estavam ali presentes e percebendo como eram diferentes dos meus. Uns mais rápidos, outros mais ruidosos, outros mais pesados. Percebi que cada um traz uma intenção diferente e isso reflecte-se na forma como caminhamos. Que escolhemos trajectos diferentes para chegar ao mesmo lugar e que todos somos atraídos pela luz, como borboletas.

Ao chegar ao objecto iluminado dei-me conta que a brancura era feita de sal. O sal da vida, a purificação, a limpeza. Toquei-lhe, não resisti. O contraste do branco do sal com a cor da pele das minhas mãos e dos meus pés, o reconhecer-me viva e cada vez mais a certeza de que o caminho é feito de luz e sombra, de vida e morte, de presença e ausência, de Mistério e Fé. 


No caminho de volta para a saída, os meus pés estavam doridos, dormentes e tão silenciosos quanto eu. Quando achava que já não havia nada de novo para sentir, fui surpreendida com a sensação de pisar, ainda descalça, o chão liso das escadas que ligavam à antecâmara e quando saímos para a rua, pude sentir cada passo na calçada como se fosse a primeira vez, com um sentimento de gratidão pelo terreno que piso todos os dias, por ser tão suave que nem reparo nele.
Escutar os próprios passos... sim, agora escuto. 



Sílvia Balancho
Setembro 2018